quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

São Paulo é uma cidade indoor


As palavras acima foram ditas por uma colega do flamenco que trocou Buenos Aires por São Paulo. Não, ela não se apaixonou perdidamente pela capital paulista. Como a maioria dos estrangeiros daqui, ela veio a trabalho. Parece gostar minimamente da cidade, mas lembra que os maiores atrativos ficam entre quatro paredes.

Revirando as minhas pastas antigas no computador, encontrei um texto que escrevi após ter voltado ao Brasil. Naquela semana, eu estava com caxumba e um pouco deprimida com o que encontrei por aqui.

"Primeiro foi o jardim. Com os filhos crescidos e o transporte público caquético, o pai decidiu pôr fim à grama crescida e dar lugar a modelos populares que levassem a família, em segurança, para os mais longínquos destinos da região metropolitana. Poucos vasinhos resistiram na fachada da nova casa, tomada por cimento, cerâmica e nenhuma imaginação. Eram violetas, samambaias e begônias de supermercado, acomodadas em potes de margarina e panelas corroídas.

Depois foi a vez da mureta onde as crianças descansavam no meio da tarde. Agora era a vez do portão de alumínio com lanças que evitariam a entrada de gatunos. Era preciso zelar os dois veículos que se apertavam na pequena garagem por onde, antigamente, as crianças costumavam correr. Isso sem contar os aparatos eletrônicos, conquistados a duras prestações e que, aos poucos, iam tomando conta dos cômodos da residência.

O portão de alumínio não durou muito tempo. Nem as lanças, nem a grossa corrente com cadeado envolvendo as grades impediram o desaparecimento do toca-fitas de um dos carros. Como semanalmente a caixa de correios era entupida por folhetos de propaganda de portões automáticos, o pai não teve outra escolha. Equipou a casa com a nova parafernália e se rendeu ao vigilante noturno da rua, que mensalmente passava pelas portas atrás de contribuições para garantir a paz e tranquilidade dos moradores.

E foi assim que a interiorana rua daquela cidade foi mudando. Desapareceram árvores, cresceram muros, surgiram antenas. Não havia mais bicicleta, nem bola, nem conversa no portão. Do alto das novas lajes e paredes recém-pintadas, vinha a fumaça de churrasco. Os encontros, agora mais escassos, eram animados por viodeokês, videogames e DVDs. 'Não se esqueça de acionar o alarme ao estacionar na rua!', gritava a mãe. 'Fique de olho nos semáforos se voltar tarde para casa!', repetia a tia. 'Cuidado para não deixar a bolsa à vista dos marginais!', alertava a TV.

Ela estava um pouco assustada. Não entendia como passou 28 anos absorta nessa vida. Até dois anos atrás, ela achava normal fazer fila para estacionar o carro no shopping apenas para sacar dinheiro num caixa eletrônico. Considerava absolutamente razoável passar semanas sem caminhar pelo bairro ou pelo centro da cidade. O melhor a fazer era aproveitar o final de semana para se trancar em casa com muitos DVDs, passar o dia fechada na casa de amigos ou se aventurar rapidamente pela cidade e ficar segura dentro de algum estabelecimento. Mas um dia, felizmente, ela se deu conta que a vida não precisava ser assim, vista de trás das grades. Ela só não sabia ainda se essa vida sem travas voltaria a acontecer um dia no Brasil."


Duas semanas depois de ter sido assaltada e uma semana após minha família ter sido vítima de tentativa de extorsão por supostos sequestradores, eu ainda me pergunto: será que vivemos aqui por pura teimosia?

4 Comentários:

às 23/02/2007, 08:40, Blogger Frontero disse...

Nós nos acomodamos até no que é ruim. E esse é mais um dos exemplos tristes disto.
Quando as notícias de tragédias, massacres, injustiças se engalfinham para caber no noticiário do dia e um apresentador anuncia o trucidamento de uma criança de 6 anos, para mudar em seguida para a abertura de um desfile de moda, passamos a achar tudo normal.
O anestesiamento é o que mata. Tomar conta (em parte) do rumo da própria vida passa por desligar um pouco a TV, fechar os jornais e imaginar quais são nossas alternativas nesta situação, já que para tudo existe pelo menos uma. Certamente não é regra viver enjaulado e amedrontado.

 
às 23/02/2007, 14:24, Anonymous Anônimo disse...

Não foi possível terminar de ler o texto e conseguir segurar algumas lágrimas que consciêntemente elas surgem para acalmar.
A lembrança de um passado bom e bonito x o presente incerto e violento; o pessimismo e a desilusão bate de frente atè nos mais otimistas e corajosos.

 
às 25/02/2007, 21:38, Blogger Maeshonista disse...

Nó na garganta. Um eterno nó na garganta.

 
às 26/02/2007, 17:57, Blogger Unknown disse...

Nossa Má, não sabia que vc tinha sido assaltada!

E também não sei o que fazer diante de tanta impunidade... já assinei X abaixo-assinados, a favor da diminuição da maioridade penal. A favor de reforma do Código Penal. Mas sinto que tem algo mais a ser feito, só não sei o que...

 

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