Minha avó se foi
Minha avó se foi. Se foi depois de 3 semanas de uma agonia que cresceu lentamente. Foi sumindo, enfraquecendo, perdendo a lucidez e a paciência. Mas foi tranqüila, nas horas finais, em paz com o Deus que lhe foi tão companheiro nos 24 anos de viuvez. Foi a ele que recorri, assim como todos da família, na hora de implorar que ela parasse de sofrer. E isso foi atendido, dentro das circunstâncias cruéis do câncer. Minha avó morreu dessa doença maldita, sem ter sentido, porém, a dor insuportável que muitos sentem anos a fio.
Preferi pensar que foi assim porque ela era a pessoa que era. Querida, muito querida. Uma pequenina filha de portugueses saída dos confins de São Paulo, tão humilde quanto a periferia onde ela foi criada por um ex-agricultor analfabeto e a madrasta, que substituiu a mãe perdida aos 4 anos. Apesar de endurecidos pela vida, ambos devem ter sido muito bons, pois entregaram ao mundo uma mulher forte, durona, mas doce, amável e generosa demais.
Minha avó tinha 86 anos. Perdeu o marido aos 62, um filho, num acidente, aos 57; enfrentou 3 cirurgias no intestino e viveu com o maior bom humor e otimismo que eu já vi em alguém. Repetia incansavelmente frases que viraram bordões da família, como “Eu não tenho assunto para conversar, porque não tenho estudo”. E, com esse jeito, nos acolhia todo fim de semana em que aparecíamos. Cantarolava musiquinhas da Velha Guarda, das quais não sabia os nomes e misturava os intérpretes. Mas ria e ficava feliz. Cuidava das inúmeras plantinhas no quintal com gosto. Me chamava para dizer “Filho, olha que coisa mais linda” quando uma folhinha diferente surgia num lugar inesperado. Assobiava para o passarinho e, quando ele morreu, passou a deixar alpiste na gaiola aberta, para que pardais e rolinhas se esbaldassem.
Ela ia da Vila Prudente até a Lapa, de trem, para nos visitar de surpresa quando éramos criança. Trazia balas, chocolate e bolachas para nos agradar e continuou fazendo isso até meus 25 anos. Às vezes, nos fazia bolinho de chuva e fritava tiras de massa de pastel. Preparava arroz (sempre papa), feijão e bifes que ela deixara temperados na véspera. Deliciosos. E cozinhava macarrão só para mim enquanto servia bacalhau – que eu não gostava – para o resto da família. Me mimava, mas de um jeito doce, assim como fazia, de modos diferentes, com cada um dos “seus”, como dizia.
Minha avó era cheia de manias. Teimosa como ela só. Mas não deixou que a própria simplicidade, o histórico de subserviência ao pai e ao marido e a tal “falta de estudo” sufocassem a alegria e o carinho que sentia, que emanava dela naturalmente. Aprendeu, já velhinha, a dizer que nos amava – numa auto-superação, mesmo não tendo sido criada para dizer essas coisas e, principalmente, por se arrepender de não tê-las dito aos filhos quando eram pequenos.
Quando eu tinha 7, 8 anos, pedi para que ela me contasse tudo o que sabia. “Assim, como um mágico ensina para um aluno, vó”. Ela obviamente disse que nada sabia, nada teria para ensinar. Mesmo assim, me contou inúmeras histórias do passado, que eu sempre adorei. Mas ela provavelmente não soube que me ensinou a maior coisa que podia, coisa que nenhum conhecimento enciclopédico ou diploma me ensinaria: nada nos torna tão grandes quanto aprender a ter gratidão, pura e simples, pela vida.
Nunca dá tempo de fazer tudo, mas fiquei satisfeito com tudo o que fiz com e por ela. Curti minha avó, de verdade.
Pra você, vó:
“O meu boi morreu,
O que será da vaca?
Pinga com limão, morena,
Cura urucubaca”
Fica em paz.