Passamos o último réveillon de preto. Da cabeça aos pés. Sem queima de fogos, euforia, sete ondas, lentilha, sorrisos e esquindô-esquindô. Nem por isso 2006 foi ruim. Começamos o ano muitíssimo bem, chutando tudo para o alto e cainda na estrada. O velho sonho da mochila nas costas finalmente virou realidade. Em cinco intensos meses pela Europa.
A segunda metade de 2006 foi um banho de realidade. Ar seco, congestionamentos, problemas respiratórios, lenços de papel, noticiários apocalípticos, caxumba e algumas lágrimas. E novamente não tivemos do que reclamar. Fomos acolhidos pelas pessoas mais importantes das nossas vidas e encorajados a olhar para frente.
Aos poucos, a conta na farmácia foi diminuindo e os utensílios domésticos, achando espaço nos armários. Novamente a sala estava repleta de caixas de papelão e carregadores do caminhão de mudanças, mas dessa vez era uma chegada, não uma despedida. Desempoeiramos quadros, panelas, livros e CDs. Ajeitamos cômodos, talheres e prioridades. Fizemos ajustes nos gastos, nos planos e na agenda telefônica. Era tempo de limpeza, tempo de pôr tudo na balança.
A poucas horas de 2007, me sinto tão empolgada quanto numa final de um campeonato de biriba. Gosto das trocas de mensagens otimistas e dos votos esperançosos da caixa do sacolão, mas realmente pareço estar desconectada do calendário cristão e do clima de contagem regressiva. Claro que à 0h do dia primeiro de janeiro estarei em meio a beijos, abraços e taças tilintando, mas por pura farra. Sinto que nosso Ano Novo começou faz tempo, talvez no exato momento em que as rodas da aeronave que nos trouxe de Madrid tocaram a pista do aeroporto de Cumbica.
Oxalá (Madredeus)
Vista da área de serviço do sol nascendo
Oxalá, me passe a dor de cabeça, oxalá Oxalá, o passo não me esmoreça;
Oxalá, o Carnaval aconteça, oxalá, Oxalá, o povo nunca se esqueça;
Oxalá, eu não ande sem cuidado, Oxalá, eu não passe um mau bocado; Oxalá, eu não faça tudo à pressa, Oxalá, meu futuro aconteça
Oxalá, que a vida me corra bem, oxalá Oxalá, que a tua vida também;
Oxalá, o Carnaval aconteça, oxalá Oxalá, o povo nunca se esqueça;
Oxalá, o tempo passe, hora a hora, Oxalá, que ninguém se vá embora, Oxalá, se aproxime o Carnaval, Oxalá, tudo corra menos mal
Um ano depois de passar o Natal no Hemisfério Norte, estou vendo as nossas festas de fim de ano de outra maneira. Aqui não há neve, nem lareiras com sapatinhos, nem pessoas com roupas natalinas. Não há gingerbread, nem candy cane, nem "Santa Claus is coming to town" 120 vezes por dia. Os shoppings estão lotados e decorados como no Canadá, mas os hábitos são bem diferentes.
Com o 13º salário nas mãos, as pessoas pagam dívidas, trocam o celular, fazem crediário para um novo eletrodoméstico e compram umas lembrancinhas para os mais chegados. Depois compram peru, pernil, cerveja ou fazem um churrasco na laje ao som do especial da Xuxa de Natal. Quando é meia-noite, todos festejam, trocam embrulhos improvisados e voltam para seus lares sonhando com um pacotinho de Eno. No dia seguinte, comem os restos da ceia, assam o finalzinho da carne, deixam as crianças depredarem a casa e vão dormir alheios à montanha de louça engordurada na pia.
Como tudo no Brasil, o Natal é informal, alegre e desordenado. Apesar da influência norte-americana, ninguém liga muito para as convenções, ou melhor, a grana é curta. Enquanto no Canadá a classe média planeja uma ceia com utensílios novos nas cores da árvore e da guirlanda da entrada, por aqui o máximo que a dona de casa faz é desempoeirar o aparelho de jantar que ganhou no casamento nos anos 70.
Se alguém me perguntar onde o Natal é mais bonito, obviamente vou responder que é no Canadá. Agora, se a questão for onde é menos alegórico, eu diria que no Brasil. Talvez a falta de dinheiro deixe as pessoas menos preocupadas em impressionar. Claro que isso não reveste o Brasil de um manto de benevolência e amor no coração. Como em qualquer lugar do mundo, há familiares que apenas se suportam durante a ceia, colegas de trabalho que ficam bonzinhos e funcionários que fingem eficiência para ganhar uma caixinha.
Está sendo divertido ver de perto o Natal brasileiro novamente. Nunca pensei que algo tão velho na minha mente se transformaria em novidade.
O ritmo está ficando lento. Pouca gente retorna ligações ou se anima a entrar de cabeça num projeto. É semana de Natal, tempo de abrir sorrisos e parecer simpático. Vizinhas de prédio murmuram Boas Festas depois de passar o ano inteiro fechando a porta do elevador na cara da outra. Chefes que mal falam com os funcionários por email agora acham de bom tom abraçar o departamento inteiro e desejar paz e prosperidade para 2007. Até operadora de telemarketing consegue ficar ainda mais efusiva que o normal.
- Então, dona Marta, que o menino Jesus derrame luz e benção do céu para a senhora e toda a sua família. - Ok, ok, peça para o motoboy trazer o recibo do meu pagamento.
Para lembrar as festas de fim-de-ano, montamos uma árvore simpática na sala e colocamos um Papai-Noel na porta de casa. As ruas estão cheias de luzinhas, os shoppings estão abarrotados de gente louca, mas nem assim entrei no clima de Natal. Deve ser o mau-humor provocado pelo calor ou o tédio causado pelos especiais natalinos na televisão.
O único fato que me anima é a união da família na casa dos meus pais na noite do dia 24. Pela manhã, seremos os padrinhos do nosso lindo Arthur, de 4 meses. E por volta da meia-noite seremos os tios babões à espera da chegada do Papai-Noel, dessa vez na pele do meu irmão Raul. A casa vai ficar de pernas para o ar, é assim que deve ser. Louça suja na pia, papéis de presente pela sala e barulho de brinquedo novo até 4 da manhã. Isso sim vai ser gostoso!
Fim de etapa
Alegrias da Mercedes Ruiz. Vai ser difícil me achar...
Junto com dezembro, chegou o fim de uma fase que começou em fevereiro de 2003. Foi naquele tempo que ouvi "Solo quiero caminar" pela primeira vez. Os passos eram tímidos e a tensão era evidente no meu rosto. Flamenco é lindo sim, mas está longe de ser fácil, ainda mais para quem ficou mais de 10 anos longe da dança.
Muita coisa aconteceu de lá para cá. No Canadá, tive a sorte de fazer aulas com a querida Carmen Romero. Na Espanha, pude aprender mais com La Tati, Manuel Reyes e Inmaculada Ortega na famosa Amor de Dios. Mas o mais importante havia acontecido dentro de mim.
O agradecimento no palco do Teatro das Artes, no Shopping Eldorado
Descobri que o sentido da dança está no prazer, não na técnica. Que vale mais sentir o compasso que passar horas em movimentos mecânicos sobre uma contagem sem música. De repente, a metodologia antiga ficou impossível de engolir. Meu corpo não respondia mais a gritos nem a olhares severos. E foi assim que enterrei para sempre a rigidez imposta por todas as professoras loucas de ballet clássico durante 12 anos.
Foram precisos 30 anos para que eu entendesse, de uma vez por todas, que não é preciso preencher requisitos alheios para dançar. Basta estar feliz e gostar do próprio corpo, com todas as características que o diferenciam de uma Ana Botafogo. Como me ensinou o Johannes nas sessões de rolfing, é nos movimentos que guardamos nossas histórias. E é com eles que quero seguir em frente. Dançar para mim, não para os outros.
Chego ao final do ano mais leve. Deixo para trás meses difíceis, noites longas e dias de incerteza. Voltar dói, e muito, mas eu só consegui entender isso quando resolvi encarar a dor.
"As pessoas não se dão conta que retornar é, na realidade, uma nova migração. Já não se é mais aquele que foi e o que ficou também mudou", explicou em entrevista ao jornal Valor Econômico a psicóloga Sylvia de Biaggi, autora do livro Psicologia, E/Imigração e Cultura. Graças ao trabalho desenvolvido pela equipe dela na USP, entendi o quanto a readaptação é custosa. Mais que isso. Compreendi o porquê da latente sensação de desencaixe.
"Índivíduos são socializados em uma cultura e vão morar depois em uma outra. Isto envolve uma sequência de processos muitas vezes únicos ao fenômeno imigratório, que podem ser compreendidos ao utilizarmos o conceito de aculturação. Nesses encontros e desencontros culturais, o sentido da vida é posto em xeque, ocorre um complexo processo de negociação relativo a quem se é, ou seja, a própria identidade, os próprios valores, a identidade grupal envolvendo questões étnico-raciais, vivência do preconceito, educação dos filhos, relações familiares, questões intergeracionais e de gênero, enfim, uma gama de questões relativas à própria existência humana."
Os pontos de interrogação continuam aqui, cobertos de longas madeixas pretas. Viver com todos eles tem sido um desafio diário e estimulante, mas agora, em vez de tentar assassiná-los, vou aprendendo que eles são parte da minha vida. Convivemos harmoniosamente após um acordo formal. Eu paro de planejar a execução sangrenta deles e eles me dão trégua em alguns momentos do dia.
O cessar-fogo, por enquanto, está dando certo. E em vez de ver o copo meio vazio, estou voltando a vê-lo meio cheio. Deve ser o espírito natalino. Ou a musiquinha medíocre de fim de ano da Globo.
A Drica, há algum tempo, me etiquetou. Para quem não sabe, essa é como uma corrente entre blogueiros para contar seis curiosidades da vida de cada um. Depois, é preciso passar a bola pra frente e etiquetar mais amigos. Bom, vou fazer apenas uma amiga pagar esse mico. Luh, me perdoe.
Eis a minha contribuição.
- Não gostava de brincar de boneca. Achava chato esse negócio de dar de comer e trocar de roupa. Preferia brincar de carrinho e riscar as paredes. Um dia, minha mãe comprou um jogo de panelinhas e passou uma tarde me ensinando a gostar de coisas de meninas. Daí para frente, passei a viver bem entre Kichutes e sapatilhas. Uma menina descabelada, com a parte de cima do biquíni no pescoço e alguma dignidade.
- Passei muito tempo acreditando que poderia ser assassinada. Motivo: meus dois santos irmãos inventaram que, antes de mim, tiveram umas oito irmãs. Todas foram mortas após desobedecê-los. "E você será a próxima se contar para a mamãe." Eu sabia, em detalhes, como a Susana teve os olhos perfurados ou como a Mariana foi jogada pela janela do quarto. Na dúvida, ficava em silêncio.
- Na adolescência, toda vez que um menino pedia meu telefone, eu sempre dava o mesmo. "Anota aí, 236-0873." Até que um dia eu fui descoberta. "Mas esse é o telefone do Bozo!", exclamou o menino. "Ah, você também ligava?", perguntei. E dei o meu telefone. Com os dois últimos algarismos errados.
- Já fiz curso de quase tudo: ballet, jazz, contemporâneo, dança do ventre, street dance, yoga, vôlei, natação, handeball, boxe, ginástica olímpica, inglês, violão, piano, teclado, catecismo, crisma, pintura em tecido, pintura em gesso e até de ovos de Páscoa. Fiquei 10 anos parada e somente aos 27 descobri o que realmente me encanta, o flamenco. Aos 30, veio a melhor de todas as descobertas: bom mesmo é dançar para mim, não para os outros.
- Eu tinha um galo de estimação. É isso mesmo, um galo. Ele se chamava Pipito e às vezes andava de gravata borboleta. Na saída daquela tradicional feira "Cães & Cia", o brinde sempre era um peixe sem graça ou um pintinho. Pois é, aí o pintinho sobreviveu ao nosso cachorro bunda-mole Orbity e virou o guardião da casa. Dormia em cima da secadora de roupas, namorava pantufas e roubava a carcaça de frango do prato do cachorro. Um galo que comia frango.
- Minha família virou vegetariana quando eu tinha 6 anos. Na primeira série, eu tinha vergonha de abrir a lancheira. É que em vez de bolinho Ana Maria ou misto frio, eu tinha um sanduíche de cebola que empesteava a sala de aula. Anos depois, quando eu estava correndo no parque, encontrei uma patricinha do primário que tirava onda da minha cara. "Você não era a menina do lanche de cebola?", perguntou aquela que era dona do lanche mais cobiçado da escola. Demos risada juntas, mas dessa vez, eu estava mais feliz do que nunca. Eu, com 55 quilos e ela com 80. Ah, nada como o tempo...
Estamos no Brasil há cinco meses. Nesse tempo, voltamos a nos acostumar com o velho ritmo paulistano. Sabemos o dia da feira, o preço do pastel, as ofertas do supermercado e o nome da novela das 8. Acompanhamos o Campeonato Brasileiro, os discursos vazios das eleições e as desculpas esfarrapadas do governo. Decoramos as linhas de ônibus, as senhas do banco e os nomes dos porteiros.
Estamos novamente ambientados, mas sem apegos. Não me sinto dona de nada, nem parte de coisa alguma. Na verdade, é assim desde sempre, mas não me dava conta. Esse tempo fora do país apenas acentuou o jeito desencaixado de ser.
Os dias têm sido assim: um olho aqui, outro lá fora. A cabeça voa longe com a previsão do tempo na TV. Sabemos de cor quanto está fazendo em Madri, Toronto e Montreal, mas não temos a menor idéia das projeções dos meteorologistas para São Paulo. Pode parecer estranho, mas é desse jeito que a gente funciona.